Acabo por me inscrever no 1º Trilho das Lampas (18 km) e ao mesmo tempo, reparo numa prova a 7 de Julho - Trail do Almonda (30 km). Já tinha feito Meias Maratonas, mas 30 km em trilhos seria uma coisa muito diferente. De forma instintiva, faço a inscrição.
A partir dali, o meu objetivo passou a ser aumentar os km. Aumentei a duração dos treinos semanais e fiz algumas provas, entre elas duas Meias Maratonas. Também comprei uma mochila de hidratação e corri várias vezes por Monsanto, treinos de 20/25 km. Portanto, acho que me preparei de forma razoável para aquele que seria o meu maior desafio desportivo.
Cerca de duas semanas antes da prova, a temperatura aumenta de forma bastante acentuada. Surgem valores muito acima dos 30º, em alguns dias chegam mesmo aos 40º.
A quatro dias da prova tinha a certeza que ela seria feita debaixo de muito calor. Começo a ficar um pouco apreensivo e mais apreensivos ficaram familiares e amigos. Tentaram demover-me de participar na prova com frases tipo "Tás maluco ou quê!!! Ainda ficas por lá caído" ou "Correr debaixo de tanto calor é uma irresponsabilidade!!!". Compreendi perfeitamente as suas preocupações, eu também estava preocupado. Mas uma coisa que eu não sou é irresponsável, informei-me mais ainda sobre cuidados a ter nestas situações e cheguei à conclusão que ia participar na prova. Levaria a mochila de hidratação bem aviada, boné, protetor solar, telemóvel para uma eventual emergência, nos dias anteriores à prova beberia muitos líquidos e descansaria bem. Assim fiz.
Domingo, acordo às 5:30h para um refrescante banho e tomar o pequeno almoço. Já tinha deixado tudo pronto de véspera para não perder muito tempo, a viagem demorava cerca de uma hora e ainda tinha algumas dúvidas no trajeto. Mas correu tudo bem, e pouco passava das 7 horas quando cheguei a Vale da Serra. Ao aproximar-me do local, depressa reparei na imponente serra que daqui a pouco tempo seria uma adversária de respeito.
Levanto o dorsal, procuro uma sombra e fico por ali a ver o pessoal da organização que ainda dava os últimos retoques na zona de partida. Vou também lendo as principais notícias do dia no telemóvel.O controlo 0 seria às 8:30h, fui ao carro preparar-me para a prova. Ainda demorei algum tempo.
Já no local da partida, encontro a Rute que também se atirou de cabeça a este desafio. Pensei logo que teria companhia durante a prova. Falámos um pouco dos nossos receios (sobretudo o calor) e dou uma olhadela ao plano de prova. É verdade, pela primeira vez fiz um apontamento sobre a altimetria da prova.
O apontamento era assim :
- Até aos 11 km, sem subidas muito acentuadas
- Dos 11 aos 14 km, uma subida longa e acentuada
- Dos 14 aos 16 km, descida muito acentuada
- Dos 16 aos 23 km, aquilo que me parecia uma das partes mais difíceis da prova (subida longa e acentuada, intercalada com pequenas zonas planas e descidas curtas)
- Dos 23 aos 26 km, descida acentuada e longa
- Dos 26 aos 27 km, subida muito acentuada
- Dos 27 aos 28 km, descida muito acentuada
- Dos 28 até ao final, havia algumas subidas mas nada comparado com as anteriores.
De forma muito simples e ingénua, era este o apontamento.
Os abastecimentos seriam de 5 em 5 km, haveria 5 etapas antes de finalmente cortar a meta. A prova seria feita etapa a etapa para não desmoralizar.
Às 9 horas é dada a partida, o sol ainda não estava no máximo mas já queimava.
As duas primeiras etapas (11 km) foram feitas sem grandes problemas, "apenas" o calor atrapalhava.
Podem ver em baixo a grande Analice Silva num dos abastecimentos.
O percurso foi mais ao menos como estava nos meus apontamentos, não houve grandes subidas e o piso foi basicamente terra batida.
Até aqui ainda tirei uma quantidade razoável de fotos, mas as etapas seguintes fizeram diminuir a minha vontade de continuar a focar a paisagem.
Segundo os meus apontamentos, agora era a vez de uma "subida longa e acentuada".
E foi verdade, foi longa, acentuada e feita dentro de um "túnel de calor".
Foto tirada pela Rute, dentro do "túnel" |
Finalmente começámos a descer, mas não era bem aquele tipo de descida que estávamos à espera. Já sabíamos que ia ser uma descida muito acentuada, não sabíamos era o tipo de piso. O piso tinha muitos pedregulhos e também irregularidades, nalguns casos, de cerca de meio metro. Descíamos com muito cuidado mas não de forma muito lenta. Foi exigido um grande esforço aos nossos joelhos. Depois de um grande esforço e concentração, acabou a descida e deu para correr até ao abastecimento. Este abastecimento foi quase aos 17 km e era muito importante, a etapa seguinte ia ser demolidora e por isso demorámos um pouco mais do que o costume. Além de beber e comer, molhámos as cabeças na tentativa de nos refrescar-mos um pouco. O calor estava agora no auge.
Quando iniciámos esta difícil etapa, estava muito abafado e sentíamos a onda de calor a tocar nas nossas caras e como que a empurrar-nos para trás. Uma sensação muito má.
O percurso era a subir e não havia muita vegetação, ansiávamos por uma sombra que não apareceu. Pode-se dizer que nesta altura estávamos a sofrer bastante, o não haver uma sombra desmoralizava muito. A certa altura vemos uma tenda com pessoas lá dentro, não podia já ser outro abastecimento. Era uma espécie de comemoração familiar, tudo a comer e a beber dentro da tenda. Podia ser uma miragem mas não, era real. Não eramos dos primeiros a passar por ali, por isso não nos ligaram nenhuma. "São mais dois malucos das corridas" terão pensado.
Seguimos o nosso caminho, nesta altura a andar. Vou agora contar um episódio que demonstra bem a solidariedade no Trail. A certa altura parámos debaixo de uma amostra de sombra, a coisa estava muito complicada. Vem a umas dezenas de metros, dois atletas, um homem e uma mulher. Vão-se aproximando e quando chegam ao pé de nós, o homem, ao olhar para as nossas caras, decidiu despejar uma parte da água duma garrafa, pelo pescoço da Rute e depois pelo meu. " Não pode ser mais, pois também já não tenho muita" disse ele. Quer dizer, estávamos numa parte difícil do percurso e este Homem, que não nos conhecia, decide partilhar a pouca água que tinha. Foi um gesto de uma enorme generosidade. Agradecemos e seguimos com eles um pouco. Entretanto no Facebook da prova, encontrei esta fotografia onde estão os dois.
Depois de muito subir, chegámos a uma zona mais plana em que pudemos correr. Apesar do muito calor que fazia, a correr não sentimos tanta dificuldade como naquela subida a andar. Entretanto, apanhámos outros atletas e fomos juntos até ao abastecimento. Ao longe viam-se as torres da energia eólica, tendo alguém dito que até as ventoinhas estavam paradas por falta de vento. Foi um alívio ter ultrapassado uma das piores fases da prova.
Neste abastecimento, além de beber e comer, também enchemos as bolsas das mochilas com água fresca. Aproveitámos a pequena sombra e descansámos um pouco. Alguns atletas ficaram por este abastecimento, o sofrimento era muito.
Depois de ver que estávamos em razoáveis condições, seguimos caminho. Havia 22 km de prova, ainda faltava muito para o fim.
Segundo os meus apontamentos, agora iria aparecer uma descida acentuada e longa. Eu li alguns relatos da prova de 2012 e estranhei algumas pessoas terem dito que o pior eram as descidas. Pude comprovar que esta descida exigia um esforço tremendo, a certa altura as dores eram tantas que pensei que o melhor era estar a subir. Foi uma descida muito longa e com muitas pequenas pedras no meio do caminho. Fazia doer não só a zona dos joelhos como também a palma dos pés. Foi feita a uma boa velocidade, tendo em conta a concentração que exigia. A certa altura vemos um homem sentado no meio do caminho e pensámos que tinha caído. Travámos e perguntámos o que se passava, estava apenas a descansar as pernas do enorme esforço. Continuámos, queríamos acabar o mais rápido possível com aquele sofrimento, mesmo sabendo que a seguir vinha uma forte subida. Pouco depois de terminar a descida apareceu, qual oásis, o último abastecimento.
Era a última oportunidade para abastecer e refrescar bem. Estávamos com (+-) 26,5 km, tanto eu como a Rute já havíamos passado a nossa maior distância em provas. O pensamento era, cada vez mais, de que agora só tínhamos era que terminar a prova.
Era a vez de mais uma subida acentuada, era complicada porque já tínhamos quase 27 km nas pernas, mas o pior era o calor que nos toldava os pensamentos. Num dia com frio tenho a certeza que a subida ofereceria menos dificuldade, mas naquelas condições foi mau demais. Quando parecia que ia aparecer uma zona plana, logo vinha mais outra subida. Estávamos a desmoralizar a olhos vistos, quando finalmente atingimos um caminho plano e conseguimos correr um pouco. Não demorou muito até se começar novamente a descer, mais uma daquelas descidas acentuadas e cheias de pedras que davam cabo dos joelhos e pés. O que nos animava era saber que estávamos a chegar ao km 28 e que "só" faltavam 2 km e tal para o fim.
Se bem se lembram, os meus apontamentos diziam que nesta altura "havia algumas subidas mas nada comparado com as anteriores" , foi o que me pareceu olhando para o gráfico do percurso. Pois bem, foram os km mais difíceis que fiz em provas. Deve ter sido por pensar que já faltava pouco, só que a cada pequena subida aparecia outra e outra e nunca mais se conseguia ver a Igreja perto da zona de partida/chegada. Devo confessar que nesta altura alguns palavrões foram ditos, não digo se por mim, se pela Rute ou pelos dois. Mas foram perfeitamente justificados.
Talvez no km 29, vemos dois rapazes junto a uma carrinha com garrafões e um enorme bidon de água. Deu para beber bem, molhar a cabeça e ficar um pouco mais frescos. O percurso continuava sobe e desce e cheio de pedras quando finalmente avistamos a Igreja de Vale da Serra. Até que enfim!!! Ainda houve mais algumas subidas antes de conseguimos correr um pouco para passar a meta com um tempo de 6h12m em mais de 30 km (o meu Garmin acusou 30,8 km). Só havia duas pessoas na meta a apontar os dorsais, a maior parte estava no pavilhão a almoçar e a ver a entrega dos prémios.
Apesar das dificuldades estávamos em condições aceitáveis. Bebemos água, comemos uma banana e logo tratámos de saber onde era o banho. Nos últimos km já vínhamos a pensar no banho, e que bem que soube.
Fiquei com a certeza que consigo fazer estas distâncias e também que com esta temperatura não me apanham em provas longas. Se fosse no inverno, seria para mim muito mais "fácil" e faria um tempo bastante inferior.
Fiquei contente por ter terminado, mas também penso no que poderia ter corrido mal.
Quero agradecer à Rute pela companhia, nestas condições e sozinho não sei se vencia o desafio. E quero também agradecer a todos os que aqui no blogue, me deram força e conselhos para enfrentar este mesmo desafio.
No link abaixo podem ver mais algumas fotos.
Fotos Trail do Almonda
Como a seguir a um desafio vem outro, já estou a pensar no Trail Noturno da Lagoa de Óbidos (25 km) a 3 de Agosto. A distância é menor e a temperatura também será muito diferente. Tenho é de arranjar um frontal mais potente.
Neste momento da minha vida, estes desafios estão a ser muito importantes.
Bons treinos para todos.
Belo relato, companheiro do duro trail! Não fosse o sol e era menos uma hora, sem dúvida! ;) Mas não quero repetir (a temperatura, a distância quero). :)
ResponderEliminarParabéns!
Beijinhos
PS: Uma senhora não diz asneiras... Foi alucinação... Eu culpo o sol... :P
Não tenho a mais pequena dúvida que era uma hora a menos para os dois.
EliminarAgora que já sei o que são 30 km, a Maratona já não me parece tão fora de contexto.
É claro que foi do sol, só pode :)
Beijinhos
Um grande abraço, Vítor. Vocês foram uns heróis!
ResponderEliminarOlha que conheço atletas com muita experiência deste tipo de provas e condições e que ficaram pelo caminho.
Vocês, estreantes, aguentaram-se!
Mais uma vez, um grande abraço!
Obrigado João.
EliminarNão facilitámos na hidratação e isso foi fundamental.
Fiquei com um misto de orgulho e alguma preocupação pelo que podia ter acontecido de mal.
Abraço e continuação de bons treinos.
Parabéns Vitor! Eu sabia que conseguia! Depois do treino que fizemos juntos foi "só" picar o ponto na prova! Estou a brincar, deve ter sido de uma brutalidade extrema com as temperaturas que se fizeram sentir. Um abraço
ResponderEliminarSílvio, foi terrível.
EliminarEstava preparado para os 30 km, mas não para aquele calor.
Abraço
Grande Vitor...mais uma vez parabéns pela superação e tb pelo relato (belas fotos). O que fizeste (fizeram) não é para qualquer um....tens todos os motivos e mais alguns para te sentires orgulhoso. Ali, mais acima, falas em Maratona...já fiz algumas, e sinceramente não me parece que o que fizeste no domingo seja mais fácil do que correr uma Maratona, bem pelo contrário. Quem faz 30km a subir e a descer, com essas temperaturas, tb faz um Maratona de estrada num ritmo calmo com a finalidade de chegar ao fim - é a minha opinião.
ResponderEliminarAquele abraço e boas corridas (ai Óbidos, gostava tanto de ir - mas este ano não posso).
P.S. Agora já percebes pq é que a mim esse tipo descidas me custam tanto :D...o impressionante é que há gente a faze-lo a "voar"
Realmente, a Maratona já não me parece tão fora de contexto. Mas vai ter que ser com tempo mais fresco :) Ainda não decidi, mas já esteve mais longe.
EliminarA certa altura da descida, disse que era melhor ir a subir, tal eram as dores nos joelhos e palma dos pés.
Penso que Óbidos vai ser mais acessível.
Abraço e cuidado a marcar treinos:)
Victor, superar desafios abre-nos o apetite para os próximos. Ler estes relatos também abre o apetite para que outros se vão juntando! ;)
ResponderEliminarParabéns, muitos parabéns pela GRANDE conquista!
Obrigado Anabela.
EliminarJá estou a pensar no próximo desafio.
Beijinhos e bons treinos
É so grandes desafios agora Vitor. Muito bem e muitos parabens, fazer estes 30 Km em condições quase impossiveis é impressionante.
ResponderEliminarAbraço
João
Obrigado João.
EliminarFoi o meu maior desafio até agora. Se não tivesse hidratado bem...
Abraço
Estou mesmo impressionada Vitor.
ResponderEliminarAs condições que descreves parecem-se mais com o inferno. Percebe-se que foi muito duro, tenta-se imaginar mas há coisas que só vividas. No vosso caso eu também teria dito muitas asneiras ;)
Parabéns pela bravura e também pela responsabilidade que nestes casos é fundamental!
Correr durante mais de 6h com mais de 40ºC por trilhos bastante inconstantes deve ser bem duro. Penso que uma maratona de estrada não se assemelhará e será mais fácil do que aquilo por que passaste. E embora toda a gente diga que a partir dos 30 km é que começa, penso que estás em condições de pensar nisso.
Beijinhos e bom descanso.
Obrigado Isa.
EliminarNaquela parte final, foram ditas bastantes asneiras :) Fui eu, porque como diz a Rute, uma Senhora não diz asneiras:)
Já começo a pensar na Maratona mas só com tempo fresco. Se não pensar no relógio, penso que a Maratona é possível. Vou pensar numa data com pouco calor.
Beijinhos e bons treinos.